Tenho que agravar de tudo agora, sob pena de preclusão?

A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, nesta terça-feira (14.11), no julgamento do REsp 1679909, decidiu aquilo que poucos achavam que decidiria: por unanimidade de votos, declarou que o rol de recorribilidade do agravo de instrumento (CPC, art. 1.015) seria meramente exemplificativo, declarando cabível o recurso contra decisão que reconhece a incompetência.

Já nos manifestamos a este respeito,[1] demonstrando que o modo de ser do Código de Processo Civil de 2015 é incompatível com tal declaração. O rol existe, exatamente, para limitar, e mesmo aqueles que defendem maior amplitude na recorribilidade, o fazem sem negar a natureza taxativa do rol.[2] Como disse GAJARDONI, “O Novo CPC não é o que queremos que ele seja” e, mesmo aquelas opções mal feitas pelo Código, com as quais não concordamos, têm que ser respeitadas e aplicadas:[3]

“A opção legislativa de um rol fechado de hipóteses de cabimento do agravo de instrumento não é boa, sendo um manancial de problemas práticos. Há real possibilidade de prática de atos processuais que, ao final, venham a ser considerados nulos ou ineficazes por decisão superior. Mas apesar disso, não se pode construir uma interpretação que, tirante casos graves de teratologia, sustente o cabimento do agravo de instrumento, de mandado de segurança, ou seja lá o que for, contra decisões que, por exemplo, reconhecem a competência ou incompetência do juízo para julgamento dos processos, que decidam sobre valor da causa, que defiram ou indefiram provas na fase instrutória. Foi clara a opção legislativa em não admitir recurso nestas situações, de modo que intepretação diversa significa deturpar a vontade reprovável, mas legítima, do legislador, sobrepondo o juízo de reprovação pessoal ao Poder Legislativo”.

Como o Código foi concebido em função da taxatividade do cabimento do agravo de instrumento, o regime de preclusões parte claramente desta premissa. As decisões agraváveis (sabemos quais são apenas em função da taxatividade) têm de ser agravadas, sob pena de preclusão. As decisões não agraváveis (não previstas no rol do 1.015), por sua vez, não se submetem imediatamente à preclusão, podendo serem impugnadas futuramente por apelação, ou mesmo em contrarrazões.

É o sistema da recorribilidade futura das interlocutórias pela via da apelação,[4] cabível apenas após da prolação da sentença, previsto pelo § 1º do artigo 1.009 do CPC: “1o As questões resolvidas na fase de conhecimento, se a decisão a seu respeito não comportar agravo de instrumento, não são cobertas pela preclusão e devem ser suscitadas em preliminar de apelação, eventualmente interposta contra a decisão final, ou nas contrarrazões”.

O sistema deve funcionar bem. Mas depende de uma premissa: as pessoas têm que saber o que é agravável e, portanto, o que precluirá se o recurso não for imediatamente interposto, e o que não é agravável e que não se submete à preclusão imediata, podendo ser futuramente impugnado pela via da apelação. Esta certeza existia com base na lei, na sabença de que o rol é claramente taxativo: o que está lá é agravável, e o que não estão lá não é!

Tal certeza foi destruída, esmagada, dilacerada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Se agora as hipóteses do artigo 1.015 são exemplificativas não se sabe mais quando agravo de instrumento é cabível e quando não é. Por consequência, não se sabe quais decisões devem ser recorridas imediatamente e quais não, sob pena de preclusão. Uma incerteza processual insustentável!

Como advogado posso dizer: tenho agora um incentivo, na verdade, quase uma imposição das circunstâncias, de agravar de todas as decisões interlocutórias, com o receio de a corte superior vir a entender futuramente que, em função da natureza exemplificativa do rol, o agravo era sim admissível e que, se não interposto este recurso, teria se operado a preclusão: perda do direito de questionar aquela interlocutória no futuro, em sede de apelação (CPC, art. 1.009, § 1º). Em abril de 2016 já havíamos alertado para esse problema:

“a ampliação jurisprudencial dos temas passíveis de serem objeto de agravo pode trazer a reboque a expansão da ocorrência da preclusão imediata do processo. Imagine-se, por exemplo, um advogado que deixa de interpor agravo de instrumento, por não encontrar a competência entre as matérias relacionadas no artigo 1.015 do CPC/2015, confiando que poderá rediscuti-la na apelação ou em contrarrazões à apelação. Caso adotado o entendimento consagrado pelo relator do agravo de instrumento nº 0003223-07.2016.4.02.0000, acima indicado, este advogado poderia ter a desagradável surpresa de não ver a sua alegação de incompetência apreciada no julgamento da apelação, sob o fundamento de que, em decorrência de interpretação extensiva do art. 1.015, III, a matéria precluiu de imediato”. [5]

Muito bem. Senhor advogado, agrave! Agrave de tudo, do que puder! A ideia do Código era limitar recursos, mas a jurisprudência acabou por criar um incomensurável incentivo, uma quase imposição, de recorrer sempre, mesmo que a parte entenda que a questão poderia tranquilamente aguardar a apelação para ser apreciada pelo tribunal.

Ocorre que nem sempre esta postura ultra-cautelosa terá sido adotada, especialmente considerando as decisões proferidas antes do referido precedente do Superior Tribunal de Justiça, momento no qual a lei dava bases semânticas claras para a taxatividade do rol e a jurisprudência já estava bastante consolidada na sua ratificação.[6]

Nesses casos, será legítimo apenar o litigante que confiava na lei e não esperava por esta virada jurisprudencial? É razoável passar a se reconhecer a preclusão das decisões que, não previstas no rol, não foram agravadas? É razoável apenar aquele que confiava que o texto do artigo 1.009, § 1º, do CPC verdadeiramente seria respeitado pelos Tribunais?

Certamente que não. A incerteza é o maior problema da técnica processual. Dediquei um livro sobre o tema para basicamente estabelecer a premissa de que: as consequências processuais potencialmente prejudiciais aos litigantes, como a preclusão e a declaração de inadmissibilidade, dependem de certeza, de um sistema que informe adequadamente a parte a respeito de como agir. Na ocasião, estabelecemos a premissa de que, ausente esta certeza e previsibilidade, torna-se “completamente descabido o sancionamento da parte que optar por um caminho possível, em detrimento de outro”.[7]

Diante da impossibilidade de o litigante imaginar, supor que no futuro alguém declarará cabível o agravo contra decisão não prevista no rol, a sua opção de não agravar não pode ser sancionada com a futura e ilegítima declaração de preclusão. O Estado-juiz deve agir com boa fé (CPC, art. 6º e 8º e CC, art. 422), reconhecer a situação de incerteza jurídica, e fundamentalmente a inexigibilidade de conduta adversa da parte e de seu advogado. Em síntese, deve permitir que todas as questões fora do rol, ainda que as cortes entendam agraváveis, devem poder serem trazidas ao conhecimento do tribunal, pela apelação nos termos do § 1º do art. 1009.

Ora, essa é a verdadeira natureza do processo colaborativo, no qual as formas, as preclusões e as vicissitudes processuais devem ser vistas como meio para exercício do direito das partes e para garantir o devido processo legal. Jamais como armadilhas, artimanhas para colocar o litigante em situações inesperadas, exigindo-lhe o conhecimento de circunstâncias totalmente alheias à sua capacidade de compreensão, contra aquilo que não se poderia exigir de ninguém naquelas mesmas condições.

Se a jurisprudência errou ao declarar a exemplificatividade do rol, esperamos que não erre duplamente, declarando também a preclusão contra aqueles que não agravaram das decisões não arroladas pelo artigo 1.015. Ninguém poderia confiar na previsão de que no futuro o rol seria declarado exemplificativo e que, por isso, existiria um ônus retroativo de agravar também de decisões não arroladas, sob pena de preclusão.

Fonte: JOTA, por Marcelo Pacheco Machado, 17 novembro de 2017 – 09h23

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[1] Artigo em coautoria com André Vasconcelos Roque, Luiz Dellore, Fernando da Fonseca Gajardoni e Zulmar Duarte, disponível em https://jota.info/colunas/novo-cpc/hipoteses-de-agravo-de-instrumento-no-novo-cpc-os-efeitos-colaterais-da-interpretacao-extensiva-04042016, acesso em 16.11.2017.

[2] A este respeito, Fredie Didier Jr. e Leonardo da Cunha defendem a interpretação extensiva sem negar taxatividade ao rol (“Agravo de instrumento contra decisão que versa sobre competência e a decisão que nega eficácia a negócio jurídico processual na fase de conhecimento”, Revista de Processo, vol. 242, São Paulo: RT, 2015. p. 275-284).

[3] Disponível em  https://jota.info/colunas/novo-cpc/o-novo-cpc-nao-e-o-que-queremos-que-ele-seja-20072015, acesso em 16.11.2017.

[4] Zulmar Duarte chama o sistema de preclusão elástica. A respeito conferir https://jota.info/colunas/novo-cpc/elasticidade-na-preclusao-e-o-centro-de-gravidade-do-processo-29062015, acesso em 16.11.2017.

[5] Artigo em coautoria com André Vasconcelos Roque, Luiz Dellore, Fernando da Fonseca Gajardoni e Zulmar Duarte, disponível em https://jota.info/colunas/novo-cpc/hipoteses-de-agravo-de-instrumento-no-novo-cpc-os-efeitos-colaterais-da-interpretacao-extensiva-04042016, acesso em 16.11.2017.

[6] O próprio STJ vinha decidindo monocraticamente pela taxatividade do rol do artigo 1.015. Cf. STJ, RESP 1.700.500, Relator Min. Marco Bellizze, j. 16.10.2017.

[7] Cf. Marcelo Pacheco Machado, Incerteza e Processo, São Paulo: Saraiva, 2013, p. 117. Trabalho originado da dissertação de mestrado defendida perante da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em setembro de 2009, sob a orientação do Prof. Roberto Bedaque.

Marcelo Pacheco Machado – Doutor e mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da USP. Advogado

Fonte: JOTA, por Marcelo Pacheco Machado, 17 novembro de 2017 – 09h23